Você deu duro para conseguir o diploma de um curso maçante; abriu mão de suas últimas férias longas de verão para fazer um estágio; pôs sua vida em compasso de espera durante meses de entrevistas; e no final conseguiu passar por cima de 97% dos concorrentes e garantiu um emprego em uma das quatro grandes empresas de contabilidade.
Não é muito divertido, e seu equilíbrio entre vida pessoal e profissional é horrível, mas pelo menos o salário é decente e você tem certa segurança no emprego. E aí, de repente, do nada, você é demitido, sem nenhum aviso. Seu crime? Ser multitarefa.
Pode parecer absurdo, e de fato é. Mas essa foi a situação vivida por várias dezenas de funcionários da EY demitidos recentemente, supostamente por terem ousado participar de várias sessões de treinamento on-line ao mesmo tempo.
Pode-se argumentar que esses ex-funcionários estavam simplesmente mostrando iniciativa. Presume-se que qualquer um que passou o tempo do treinamento navegando pelas mídias sociais estava seguro, desde que participasse de apenas uma sessão. Mas a EY alegou que o que os ex-funcionários fizeram constituía uma violação da ética. "Nossos valores fundamentais de integridade e ética estão na linha de frente de tudo o que fazemos", declarou a empresa.
Um dos demitidos reclamou que a companhia "cria uma cultura multitarefa", de fazer várias coisas ao mesmo tempo. "Se você é obrigado a cumprir uma jornada de 45 horas semanais e fazer muitas horas a mais de trabalho interno, como é que isso pode ser de outra maneira?" Exatamente.
Pergunte na internet se ser multitarefa é algo bom e, embora ela possa não informá-lo de que isso é uma infração passível de demissão, com certeza se mostrará fortemente contra a prática. "Pare de ser multitarefa. Sério - pare com isso já" foi o título de um artigo recente do guru da produtividade Oliver Burkeman no The New York Times. Variações sobre o tema são abundantes.
Os argumentos contra ser multitarefa tendem a se aglutinar em torno da ideia de que na verdade isso é "um mito": não somos capazes de nos concentrar em mais de uma coisa ao mesmo tempo e, portanto, o que fazemos é "alternar tarefas", o que é desgastante para o cérebro e ineficiente. Um estudo concluiu que realizar várias tarefas ao mesmo tempo pode ter um efeito negativo de até 40% na produtividade. Outro verificou que apenas 2,5% de nós são capazes de fazer isso sem prejudicar o desempenho.
Eu concordo com a essência geral dessa ideia - a maioria de nós deveria desacelerar, desligar, fazer menos coisas, ficar entediado com mais frequência. Mas precisamos distinguir entre dois tipos de multitarefa.
Existe o tipo negativo, que nos leva a pegar nossos telefones enquanto assistimos a um filme ou checar nossos e-mails quando estamos tentando fazer um trabalho difícil - que com frequência tem a ver simplesmente com deixar para depois. Mas também existe um tipo positivo, que pode estimular a produtividade de fato.
Esse tipo de comportamento multitarefa pode ser realmente magnífico. Na minha opinião, você não sabe o que é estar vivo até subir em um aparelho de treino elíptico com uma cópia da sua revista semanal favorita na mão e uma playlist alegre a todo volume em seus fones de ouvido. Eu entendo que isso não seja do gosto de todo mundo. Mas, para mim, essa combinação - endorfinas do exercício intenso, música para me manter animada e para marcar o ritmo e, acredite ou não, imersão total na minha leitura - pode criar uma experiência bastante eufórica. Saio do aparelho com o exercício feito, um artigo de seis mil palavras lido - que em outras circunstâncias poderia ser um desafio à minha capacidade de concentração - e me sentindo exuberante.
Este não é o tipo de comportamento multitarefa sem sentido, automático e escapista em que alguém afunda sem perceber; este é o tipo de multitarefa consciente, no qual alguém decide se envolver racionalmente.
Outro exemplo - com que talvez mais pessoas consigam se identificar - seria conversar com alguém pelo telefone enquanto lavo a louça ou escutar um audiolivro enquanto dirijo. Minha capacidade de ouvir e prestar atenção melhora quando faço algo com meu corpo ao mesmo tempo, e de fato estudos mostram que fazer algo tão simples como rabiscar pode ajudar na concentração - em particular para aqueles com dificuldades de atenção.
Instrutores de práticas de atenção plena diriam que a forma mais elevada de viver seria estar concentrado totalmente no presente ao lavar uma louça - perceber o calor da água em nossas mãos, ouvir o doce tilintar dos copos uns contra os outros, sentir o cheiro estimulante do detergente - mas parece que ainda não cheguei lá.
Com sessões de treinamento tão excitantes como "O quanto sua marca digital é forte no mercado?" e "Conversando com a IA, um prompt de cada vez", dificilmente se pode culpar os ex-funcionários da EY por não terem alcançado esse estado de iluminação espiritual com qualquer uma delas.
Fonte: Valor Econômico - Jemima Kelly / Tradução – Lílian Carmona. |