Dâm Mageski é customer experience (CX) de fraude no Will Bank desde 2021 e quando entrou na empresa ainda não tinha se entendido como um homem transsexual. Sua colega de trabalho Ariel Rodrigues, por outro lado, passava por um processo de retificação de nome após anunciar sua transição do gênero. Interessado, Mageski conversou com ela até compreender que aquele também era o seu caminho. Um tempo depois, decidiu comunicar para sua liderança. “Acho que no mesmo dia todos os processos foram encaminhados para alterar meu nome, mudar meu pronome no Slack e na empresa toda”, conta Mageski ao Valor.
Por conta de complicações jurídicas e falta de orçamento, Mageski demorou mais de dois anos para completar o processo de retificação do nome. Luiza Gomide, CHRO do Will Bank, explica que a instituição apoia os funcionários trans cobrindo todos os gastos da mudança de nome. “A política começou com o reembolso dos custos. Depois, a gente entendeu que o reembolso muitas vezes era uma barreira financeira. Então, mudamos essa política ao longo do caminho para pagamento adiantado de até R$ 5 mil.”
Mageski também relata que um plano de saúde proporcionado pela empresa pode ser muito importante para a pessoa trans, assegurando acompanhamento com psicólogos, psiquiatras e endócrinos, entre outros especialistas. A rede de apoio, por fim, é um fator valorizado pelo trabalhador. Ele afirma que, na cultura do banco, funcionários trans estão dispostos a ajudar uns aos outros. Gomide diz que 28% dos funcionários do Will Bank se consideram parte da comunidade LGBTQIAPN+ e 2% são pessoas trans.
Outro exemplo de medida inclusiva que abrange pessoas trans no banco é o programa “Lidera Plural”. Gomide explica que mais de 40 gestores já foram contemplados com conteúdo que objetiva desenvolver funcionários de grupos vulnerabilizados na habilidade de liderar. Grupos de afinidade, como o “Queer Will” e o “Willgualdade, também são incentivados dentro da empresa. Ela finaliza descrevendo que o “willer” (apelido dado internamente ao funcionário) pode fazer sessões de terapia e se beneficiar de uma licença parental estendida de 180 dias, independentemente da configuração familiar ou de ter gerado a criança.
“Desde o dia que uma pessoa trans se assume, oportunidades de trabalho automaticamente se fecham. Você tem que provar, o tempo todo, que você é capaz”, diz Jessy Lira, mulher transsexual, analista de recursos humanos na PepsiCo. “Desde o momento que você se assume mulher trans, você já é empurrada para o abismo da marginalização, e esse abismo mata”, afirma.
Em 29 de janeiro, celebrou-se o Dia da Visibilidade Trans, e os números a seguir mostram a importância da data, que busca trazer conscientização sobre o tema. No Brasil, 105 pessoas trans foram mortas em 2024, segundo levantamento da ONG Rede Trans Brasil. O país segue como o que mais mata pessoas trans no mundo pelo 17º ano consecutivo, informa a mesma instituição. São 15,5 milhões de brasileiros pertencentes à comunidade LGBTQIA+, número que representa 7% da população total, de acordo com dados de 2024 do Datafolha. A Associação Acontece Arte e Política LGBTI+, com base em um levantamento que envolveu 1,5 milhão de trabalhadores, publicou que essa parcela ocupa 4,5% dos postos de trabalho. A comunidade trans fica com 0,38% desses empregos.
“As empresas estão evoluindo, mas de uma forma lenta” diz Soraia Cardoso, especialista em diversidade e fundadora da Inclusive Consultoria e Treinamento. “Pelo que vi, esses programas [para trabalhadores transexuais] ainda são exceção no mercado”, levanta Luana Génot, fundadora e CEO do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR).
Cardoso complementa que é um cenário complexo, pois quando existe contratação sem estruturação do time, a pessoa trans pode não se sentir pertencente ou respeitada na companhia, e logo pedir demissão. A especialista ainda ressalta que com a eleição de Donald Trump, nos EUA, as empresas norte-americanas estão desestruturando setores ligados à diversidade, o que pode chegar ao Brasil através de corporações internacionais. Para inserção de trabalhadores trans, ela sugere atitudes como letramento para lideranças, implementação de banheiro neutro ou sanitário à parte, sem gênero, assim como respeito ao nome social.
Génot ressalta a necessidade de disseminar benefícios a partir da escuta das necessidades da população trans, “para que não seja uma solução que procura um problema, mas um problema que encontra soluções”. Ela reforça a importância de uma licença parental inclusiva e da implementação de benefícios cada vez mais customizados para todo tipo de pessoa e família.
Lira, da PepsiCo, tem 30 anos de idade e recentemente realizou a cirurgia de redesignação sexual, feita para adequação ao gênero com o qual a pessoa se identifica. Para a recuperação completa, precisou de aproximadamente um mês. “Tive um apoio grande do time de benefícios e saúde”, relata. A analista ainda conta que recebia telefonemas periódicos da empresa prestando solidariedade e perguntando como estava indo sua recuperação. “Eu me senti muito acolhida”, observa.
Gael Santos, que faz parte do time de operações da fábrica da PepsiCo, atua na empresa há 11 anos. Ingressou na companhia ao completar 18 anos de idade. Depois de um tempo na empresa, resolveu fazer a alteração do seu nome e teve todos os processos agilizados pela PepsiCo. “Eles não me passaram valores. Pagaram tudo”, relata. O processo durou seis meses.
Nadja Minami, diretora de remuneração e benefícios na PepsiCo Brasil, compreende que as empresas são capazes de usar a visibilidade que possuem para conscientizar, levantar pautas e desenvolver propostas que favoreçam um cenário mais inclusivo. O programa de retificação do nome da PepsiCo vale também para estagiários e inclui suporte jurídico com advogados especializados em direitos da comunidade LGBT.
Além disso, a empresa de alimentos e bebidas criou, em 2020, o projeto Transformar, que tem como objetivo atrair, contratar e incluir profissionais transgêneros. A equipe de recrutamento participou, inclusive, de um workshop sobre como conduzir entrevistas com candidatos trans. A política de parentalidade da PepsiCo inclui casais diversos e abrange casos de adoção, determinando até seis meses de licença, informa a diretora. “Nós disponibilizamos terapia por meio do nosso plano de saúde sem nenhum limite de sessões”, detalha.
Há um ano e oito meses, Agatha Costa, mulher trans, começou a trabalhar na fábrica da Alpargatas de Santa Rita (PB) fazendo montagem e acabamento de sandálias. “Hoje, já estou como operadora de injetora termoplástico bicolor”, diz. Com 31 anos, ela relata passar por preconceitos diários. “Um dos preconceitos que me incomoda bastante é o erro do pronome. Isso nos invalida”, lamenta. Ela explica que a luta começa no espelho, quando a própria pessoa trans tenta se validar em meio à constante agressão. “Felizmente, na Alpargatas ainda não passei [por transfobia], espero não passar, mas na vida sim, quase todos os dias.”
A Alpargatas tem 230 funcionários da comunidade trans, 100 foram contratados em 2024, destaca Gislaine Lima, diretora de talento e cultura da companhia. A empresa também possui um programa que apoia o trabalhador na mudança do nome e Lima diz que sete pessoas já o utilizaram desde o seu lançamento, em 2023. “É um benefício para todas as pessoas que trabalham na Alpargatas e que ultrapassaram um período de três meses de experiência”, detalha.
Para além das ações internas, a empresa de calçados possui o programa Alpa TRANSforma, um projeto de desenvolvimento profissional exclusivo para pessoas trans, com foco em competências básicas, socioemocionais e de educação digital. Ao final do programa, os estudantes recebem certificação e a possibilidade de concorrer a vagas na Alpargatas. Rodas de conversa, palestras e treinamento para líderes são outras atividades fomentadas pela empresa.
Todas as companhias citadas disseram fazer o uso da linguagem neutra. Na PepsiCo, de acordo com Minami, o uso começa antes mesmo da entrada do candidato na empresa, já na divulgação das vagas. A companhia reforçou essa atitude no lançamento do “Guia de Linguagem Neutra de Gênero e Diversidade”, em 2021, que pode ser acessado no site da marca. “Ao mudar pequenas palavras ou gestos, nós iniciamos uma grande transformação de pensamento e comportamento”, afirma a diretora de remuneração e benefícios da PepsiCo.
Gomide, do Will Bank, diz que a linguagem neutra está presente no banco. “Usamos no nosso dia a dia”, pontua. Na “Cartilha de Diversidade, Equidade e Inclusão” da Alpargatas, disponível online, a empresa declara ter o compromisso com a promoção da equidade de gênero e, por essa razão, usa termos de gênero neutro “sempre que possível”.
Dâm Mageski recomenda para outras pessoas trans que não desistam. “Eu sei que o processo é longo, difícil e doloroso, mas vale muito a pena ser quem você é. Vale muito a pena lutar por você”. Para ele, nada “paga” a felicidade de ser você mesmo. “Por mais que seja demorado, faça. E não se arrisque, veja onde é seguro”, aconselha.
Agatha Costa recomenda às pessoas trans buscarem conhecimento. Apesar do preconceito, insiste para que também não desistam. “Mais cedo ou mais tarde pode aparecer um projeto como esse em que eu fui inserida. Hoje eu tenho o meu trabalho.”
Já Jessy Lira reforça a importância da qualificação. “Acredito que o estudo é uma ferramenta muito importante para que nós possamos crescer profissionalmente; para que nós possamos lutar”, diz, finalizando com um recado. “Quando você conseguir ter a sua oportunidade, faça o máximo para puxar outras pessoas trans com você, porque assim nós iremos criar uma grande cadeia, onde uma ajuda a outra.”
Fonte: Valor Econômico – Rafaela Zampolli - sob supervisão de Fernanda Gonçalves. |